Cia dos Outros apresenta

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intrigas, acidentes e baixarias em grande estilo

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Crítica "Corra Como um Coelho" - FESTIVALE 2009

A edição de viver: sentidos do descontrole em cena
Por Valmir Santos*

Em plena ditadura da acumulação – poupar, lucrar, comprar -, a Companhia dos Outros propõe uma paródia ferina e bem humorada dos tempos que correm. Os jovens criadores egressos dos palcos/laboratórios da USP parecem promover uma reciclagem daquilo tudo que, em tese, seria descartado em cena. Antes, a hipérbole é o veículo de linguagem para uma dilatação narrativa que dá de ombros e faz do dissenso a nova desordem.

Com os primeiros resultados da pesquisa apresentados no final de 2008, sob orientação dos professores Antônio Araújo (diretor do Teatro da Vertigem) e José Fernando Azevedo (do Teatro de Narradores), “Corra Como um Coelho” dispõe figuras e situações pelo avesso, de ponta-cabeça, distorcidas e ainda assim plausíveis na sua síncope do cotidiano febril de quem vive nos grandes centros urbanos. Sob o império da fragmentação/reiteração dramatúrgica, as interpretações e o espaço cênico evidenciam esse desmanche de sentimentos em relação ao outro, afetos e desafetos tênues.

Uma moça clonada dos escritos de Dorothy Parker, fatal em vestido vermelho, e dois estranhos rapazes, um deles forasteiro no pedaço – a sugerir um vetusto e kitsch salão palaciano -, relacionam-se como se cada um mantivesse resguardo em uma bolha.

É do choque dessas ilhas que se esboça um fiapo de enredo estilhaçado, mediado pelos tipos carismáticos do trio de atores e suas interfaces aos borbotões precipitadas sobre o espectador instado à excitação frenética dos corpos, palavras e imagens de impacto poético bastante raro e estranho.

Essas sequências aparentemente desconexas, num primeiro momento, evoluem para uma trama segundo a construção de cada espectador, que pode ver ali um triângulo amoroso corroborado por uma típica cena de piquenique nas comédias românticas do cinema, apesar de dissolvida por uma pancadaria ou outra.

Dois homens espancam-se por uma musa equidistante ou pela disputa de território, sabe-se lá. Tudo é muito visceral, a começar pela luta de Pedro Cameron e Tomás Decina, um embate físico que às vezes parece fugir completamente ao controle de quem está sob o palco e, tentamos acreditar, deveria transmitir mais domínio diante da platéia, absorta.

Mas domínio e equilíbrio são imagens que passam ao largo. O diálogo é outro, feito de ruídos, estranhamentos, inversões de todos os vetores, como antevemos desde o saguão de entrada no vídeo em que os próprios atores disparam pelas ruas da urbe num documentário disfarçado de ficção, ou ao contrário.

Idem para a moça rodopiante de Carolina Bianchi, sua beleza estonteante, tresloucada em melancolia agridoce, a tendência suicida de araque, o masoquismo atávico de quem gosta de pensar que é apenas um tapete de urso, encorpando a voz ficcional de Dorothy Parker.

Estamos diante de um teatro em que a idiotice se intromete como material poético, uma licença algo absurda. A metalinguagem do programa de auditório, do show da vida diante da claque, não quer dizer apenas instrumentalização para a crítica à sociedade liquefeita. Antes, a diretora Fernanda Camargo e a equipe com quem trabalhou em colaboração se apropriam dessas raias da arte (o teatro, a dança, o cinema, a televisão, a literatura, as artes visuais, a música) e constroem sentidos os mais díspares nesse modus operandi que não deixa de ser, em si, um exercício obsessivo de acumulação até o limite da saturação.

Aquela saturação que, findo o espetáculo, nos acompanha de perto com a sensação coeditada de que há um “delay” entre a velocidade lá fora, por meio da qual somos abduzidos na irrealidade cotidiana, feito um clipe, e o descompasso com os porquês que efetivamente nos movem, mas nos vemos estanques. Uma sedução crepuscular entre o que é paisagem humana e o que não é.

Em seus jogos e joguetes tragicômicos que lembram algo da dramaturgia e da encenação do argentino Rafael Spregelburd e seu grupo El Patrón Vazquez, a Companhia dos Outros concebe um rizoma próprio que lhe permite flutuar por camadas tão delicadas e ao mesmo tempo perigosas diante da voragem desse “Corra como um Coelho”. Felizmente, a mediação teatral é mantida à espreita, indevassável, sem sucumbir ao índex pós-moderno para fazer pose de. Antes, nos faz envolve com o embaralhar de códigos e instiga a meditar sobre a urgência do desaceleramento de cuca para se ir mais longe.



*Jornalista, autor de históricos de coletivos de Teatro como Armazém Companhia de Teatro, Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, Parlapatões, Patifes & Paspalhões e Grupo XIX de Teatro. Integra o júri paulista do Prêmio Shell de Teatro. Mestrando na USP. Foi repórter do jornal Folha de S.Paulo (1998-2008).

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